sábado, 11 de dezembro de 2021

#109 - O Brás, meu amigo Malagrino, e um grupo de ciclistas toscos

Era tudo mato! Tudo isso era só mato! Aqui parecia um mar quando chovia. Tudo várzea do rio. Toda vez que pedalávamos, o velho Bueno ia me contando coisas sobre aquelas terras, as chácaras, a colina da Penha, o rio Aricanduva, o caminho do Brás. O velho dizia que tinha conhecido o José Brás, donos daquelas chácaras, pessoalmente quando criança. Anos mais tarde, quando conheci Malagrino, voltei a pedalar por aquelas bandas, e ia, assim, repetindo aquelas velhas histórias para meu novo amigo italiano.  

Lembro da primeira vez que vi Malagrino. Eu estava parado na frente da hospedaria quando ele veio, bateu no meu ombro, e apontou pra minha bicicleta. Não entendi uma palavra que ele disse, mas dias depois, já estávamos pedalando juntos, e foi assim que começou, meio sem querer, a história do grupo de ciclistas mais toscos e desajeitados que já pedalaram pelas ruas de nossa, agora, metrópole.

Após as primeiras leis abolicionistas, a imigração tornou-se uma saída para suprir a falta de mão de obra barata. Soma-se a esse contexto a situação de miséria e fome na Europa no fim do século 19 e início do 20. Assim, o Brasil, e mais notadamente São Paulo, principal produtor de café, desenvolveram políticas de imigração, nas quais se insere o sistema de hospedarias, criadas para acolher imigrantes que vinham trabalhar nas lavouras e no início da indústria.

Malagrino desembarcou em Santos vindo de Corigliano Calabrio. Subiu de trem de Santos pra São Paulo e foi naqueles primeiros dias enquanto estava na Hospedaria de Imigrantes que ele veio bater no meu ombro e apontar pra minha bicicleta. Isso foi entre a greve geral de 1917 e a revolta paulista de 1924. Não me lembro exatamente. Definitivamente antes de 1924. Sei disso porque ficou extremamente perigoso pedalar pelas ruas na época da revolta paulista e o Malagrino morria de medo. Os caras construíram uma trincheira bem na esquina da minha casa. Ninguém sabia nada do que estava acontecendo. Tenta imaginar um mundo sem tweets e celulares. A coisa ficou feia! Tinha trincheiras na Paulista, no Teatro Municipal. Num dia pela manhã um estouro! Uns soldados que tinham assumido um controle de um batalhão de cavalaria lá pros lados de Santana, tomaram a base aérea de Marte e de lá do outro lado do rio dispararam balas de canhão contra o Palácio do Governo, que ficava próximo à Praça Princesa Isabel, no centro antigo. Bairros operários foram bombardeados. Foram 23 dias surreais em São Paulo!

Foi logo depois desse episódio que descrevi, que Malagrino se mudou. Nossos rolês foram ficando mais esporádicos até que nunca mais pedalamos juntos.

Vi com meus próprios olhos as mudanças que foram ocorrendo ao longo dos anos, no Brás. Por volta de 1940 sírios e libaneses começaram a se fixar no bairro por conta dos preços mais baratos dos imóveis. Na mesma época, a forte migração nordestina. Até meados de 70 os migrantes transformaram a imagem do comércio na região. Foram várias as amizades que fiz nesses anos. E pra todos esses novos amigos e amigas, sempre contei as histórias do velho Bueno e as presepadas que passei com Malagrino naqueles primeiros anos de chave-de-boca - nome tosco, de um grupo de ciclistas toscos e desajeitados - que, até hoje, pedalam por aí, nas ruas de nossa caótica e querida cidade. 



Depois de anos e uma pandemia, cá estamos de volta com o rolê #109. Inicialmente planejado pra ser Tiquatira até Itaquera, Ometto e eu decidimos ir até o Centro. Passamos pelo Brás, Pari, Luz, Centro, comemos um pastel na feira do Minhocão, subimos pela Consolação até Paulista e descemos pela Vergueiro até o Centro. Quando estávamos no Brás, na volta, o pneu do Ometto estourou e ele acabou voltando de metrô pra casa. Eu segui até o Jardim Santa Maria, perto da Cidade Líder. 

bikers: felipe ometto e sandre quirino.